sexta-feira, 24 de julho de 2015



A verdade e as miopias

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Miopia é uma anomalia da refração ocular que faz com que a visão à distância seja comprometida. Falta nitidez, clareza, certeza na visão de um objeto.
O poeta Carlos Drummond de Andrade fala sobre a miopia em um belo poema em que descreve as dificuldades de encontrar a verdade.
A porta da verdade estava aberta

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.


Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só conseguia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.


Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso 

onde a verdade esplendia os seus fogos.

Era dividida em duas metades

diferentes uma da outra.


Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era perfeitamente bela.

E era preciso optar. Cada um optou

conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Drummond)
A verdade é profundamente desafiadora. Conhecer a verdade requer muito cuidado, muito respeito, muita determinação. Vivemos tempos fugidios, fluidos, pouco reflexivos. Acreditamos na primeira história que nos contam. Aceitamos, passivamente, a primeira impressão que alguém foi capaz de criar em nós. Não conhecemos e não gostamos de fulano. Não lemos e desprezamos o livro ruim de certo autor. Nunca o vimos e descrevemos com detalhes o que nos incomoda no outro. Não é estranho? Não é pouco racional termos opinião sobre o que não tivemos tempo de conhecer?
A informação rápida nos rouba, desprevenidos, a chance de nos aprofundarmos. Ouvimos uma notícia e, imediatamente, nos prostramos como seus servos necessitados de propagá-la. E o fazemos sem o crivo da verdade. Mas o que é a verdade? Como entrar por sua porta, como queria o poeta, e conhecê-la? Como fazer uma opção sabendo que os caprichos, as ilusões e a miopia nos acompanham nessas escolhas?
Vejam a responsabilidade que tem um juiz ao julgar, tendo como objetivo maior a concretização da justiça. A responsabilidade que tem um jornalista quando ouve um relato e precisa decidir se há verdade ou não. Quando sabe que, de seu teclar, vidas poderão ser atingidas. Um marido que fica sabendo da vida paralela de sua mulher. Será verdade? Quantas histórias de amor acabaram por interferências mentirosas de terceiros?
No domingo passado, fui assistir a um filme, "Os Olhos Amarelos dos Crocodilos", que traz o tema da verdade com um enredo muito bem escrito. Fui com uma amiga jornalista. Saímos e fomos prosear sobre a verdade. Fiquei feliz ao ver sua preocupação com a vida dos outros, com os erros que a imprensa comete quando descuida da ética e da perseguição implacável pela verdade. Quando o que perseguem é alguém, por interesses menores, pouco honestos. Porque, também na imprensa, há ausência de ética. Disse-me ela que os jornalistas deveriam  lembrar os sonhos que os motivaram a ingressar em uma profissão tão essencial para a verdade. Para a defesa dos que não têm voz. Para ser a porta aberta àqueles que, sozinhos, não chegariam a lugar algum. Enquanto nos alimentávamos da conversa e de uma boa massa, o garçom que nos atendia explicou que, "para falar a verdade", o abacaxi, sobremesa que havíamos escolhido e perguntado se estava doce, não estava tão saboroso.  Eu brinquei dizendo que era bom saber que ali morava a verdade. Ele sorriu e disse que não adiantaria mentir, pois logo descobriríamos. Como é bom quando se tem a esperança de que a verdade não tardará a chegar. Quantas dores seriam evitadas, quantas injustiças seriam minimizadas com a sua chegada.
Míopes somos nós quando acreditamos em algo que não conhecemos. Quando nos convencemos, utilizando os argumentos mais duvidosos, apenas para insistir em nossa teimosia. É melhor não dar opinião do que opinar irresponsavelmente. No filme "Os Olhos Amarelos dos Crocodilos", os que optaram por uma vida errática não se deram bem. Prefiro acreditar que na vida real pode ser assim. Que o mal não vence o bem, que a mentira não prevalece sobre a verdade, que os que respeitam o outro acabam compreendendo que assim é que se faz para se ter felicidade, paz.
Viva a verdade. Quanto à miopia dos olhos, há remédio: cirurgia, óculos, lentes de contato. Já a miopia da alma, essa dá mais trabalho de curar.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 12/07/2015